sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Crítica feminista à sociedade de Mercado*

Nesse texto analisamos a mercantilização como a principal característica das sociedades baseadas no liberalismo econômico. Nesse modelo as relações entre as pessoas passam a ser mediadas pela relação com a mercadoria. As mercadorias parecem ter um valor em si, o que esconde a enorme quantidade de trabalho das pessoas necessário para produzi-las.

Esse sistema não se expande apenas colonizando regiões do planeta, em que as sociedades estavam organizadas de maneira diferente, ele se expande aumentando o ritmo e a intensidade de exploração do trabalho nas fábricas, nos lares, nos escritórios. E ele também se expande ocupando mais dimensões da vida das pessoas. Hoje, as novas fronteiras do mercado estão avançando sobre nossos direitos, sobre o meio-ambiente, a genética dos seres vivos, sobre os conhecimentos e a criatividade dos seres humanos.

Depois de uma forte resistência dos povos, principalmente através das lutas contra a OMC e os Tratados de Livre Comércio, percebe-se que o modelo passa por uma crise. Porém ele ainda mantém sua hegemonia, embora já não seja mais capaz de se apresentar como a única alternativa. A construção de um pensamento crítico e de ações diretas contra a mercantilização é fundamental para reconstruir, em nossa sociedade, a hegemonia de um outro modelo baseado no bem-estar da humanidade.

O lugar das mulheres na sociedade de mercado

O mercado tornou-se organizador da economia e, assim, nos impõe uma forma de organizar nossas vidas e de definir o que é ser mulher. Na vida de mercado, ser mulher é ser flexível e ter paciência para aceitar condições de trabalho cada vez piores e com salários cada vez menores. É sacrificar-se na informalidade sem nenhuma garantia de direitos. É se sentir responsável por cuidar sozinha da casa, das crianças, das pessoas doentes depois de um dia todo de trabalho.

É assim que a sociedade de mercado explora gratuitamente o trabalho doméstico das mulheres, para não ter que disponibilizar serviços públicos de saúde e educação, equipamentos como restaurantes populares, creches, lavanderias públicas, etc. O discurso disseminado é que serviços públicos são coisas do passado, que se queremos hospitais e escolas de qualidade, temos que pagar por eles.

Na vida de mercado, a mulher que depois de tudo isso se sente cansada, deve comprar numa farmácia as novas drogas que prometem dar fim às dores do corpo e da alma.

Somos mulheres, e não mercadorias!

Nesse sistema, que é ao mesmo tempo machista e capitalista, as mulheres são transformadas em mercadorias, objetos, seja na indústria da prostituição e da pornografia, seja na forma como são expostas na publicidade, que manipula nossos sonhos e desejos, criando necessidades que antes não existiam, apenas para aumentar o consumo.

A publicidade expõe as mulheres como um produto para consumo dos homens (e cujo valor é estabelecido pela vontade deles), no sentido literal, como fazem as propagandas de cerveja, ou no sentido indireto, quando afirmam que é comprando um produto X ou Y que elas agradarão aos olhares masculinos e serão felizes, como se fosse essa a primeira das suas atribuições: ser um objeto acolhedor, atraente, disponível. Também há as campanhas publicitárias que anunciam mil e uma facilidades para as mulheres cumprirem sua intensa jornada de trabalho, como os produtos de limpeza que fazem milagres para que a realização das tarefas domésticas, que cabem às mulheres, seja mais “eficiente”.

A definição da “feminilidade” é marcada pela dependência em relação às expectativas masculinas, reais ou imaginadas. Basta olhar ao redor para perceber que estamos cercadas de produtos a serviço da “feminilidade”, que se baseiam na exploração e na naturalização dessa dependência.

Na publicidade, a mulher é constantemente representada assim: um objeto de consumo, que, para ter valor, tem que seguir um padrão. Para atingir esse padrão, ela deve aceitar as condições do mercado e consumir uma enorme quantidade de produtos e serviços. As mulheres exibidas nessas propagandas viram “modelos de perfeição”, modelo que as mulheres perseguem como se fosse uma condição para sua realização. Assim, a exposição da imagem e do corpo das mulheres como objeto contribui muito para colocá-las num estado permanente de insegurança com relação ao seu corpo.

As formas do corpo da mulher, historicamente controladas, hoje também podem ser compradas segundo os padrões da moda. Segundo o secretário-geral da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, em entrevista à Folha de São Paulo, a quantidade de adolescentes que colocam prótese de silicone aumentou 300% nos últimos dez anos. Em 2006, foram realizadas 700 mil cirurgias plásticas no país. O padrão segue semelhante em outros paises do mundo, tais como a Espanha onde uma pesquisa da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética do ano 2005 indicou que 40,1% das cirurgias de estética praticadas no país são em menores de 21 anos. Esse país Europeu está em quarto lugar do mundo por numero de procedimentos com uma porcentagem de 8,14%, atrás os Estados Unidos (12,9%), México (9,23%) e Argentina (8,46%). De forma alarmante, o crescimento do mercado também se dá por sua expansão para as mulheres do meio popular através de parcelamentos, consórcios ou dívidas com agiotas.

Direito ao nosso corpo

A mercantilização do corpo e da vida das mulheres também se expressa no plano da sexualidade. A determinação de um padrão para o exercício da sexualidade feminina e a constante vigilância e controle sobre ela demonstram que, no plano do sexo, as mulheres também devem ser vistas como disponíveis e pertencentes aos homens. A vivência da sexualidade está marcada pelas relações opressivas que as mulheres vivem na sociedade.

É visível que há uma banalização da sexualidade feminina, exposta incansavelmente pela mídia ou abordada de forma pouco respeitosa em diversos âmbitos da sociedade. Dessa forma, a sexualidade também é apresentada como uma mercadoria disponível. Essa banalização traz consigo uma padronização no exercício da sexualidade, impondo um padrão aceitável de como cada um e cada uma deve vivenciar a sua. Tal situação expressa que o controle sobre o corpo da mulher e sobre a sexualidade está muito relacionado com essa realidade de coisificação e mercantilização.

Por exemplo, por mais que haja uma farta exposição da nudez feminina e de exploração da sexualidade, o sexo ainda é altamente atrelado à realização da maternidade. Na sociedade de mercado vivemos um retrocesso: a maternidade como obrigação e condição para que uma mulher seja “completa” é um dos discursos permanentes da propaganda, dos anúncios de pasta de dente aos de seguros de saúde.

O feminismo pôs em debate a função social da maternidade, a responsabilidade do poder público em garantir serviços de saúde de pré-natal e parto, creche e educação, entre outras políticas. Ao mesmo tempo, deve ser garantido às mulheres o direito de decidir se querem ou não ter filhos e o momento de tê-los.

Ser mãe biológica também se tornou uma mercadoria através do mercado da “reprodução assistida”. Cada vez mais mulheres consideram natural procurar médicos, tomar hormônios e submeter-se a processos dolorosos para engravidar a todo custo.

A mercantilização do corpo, da vida e da sexualidade da mulher também se manifesta através das indústrias farmacêuticas e da alimentação (as duas minas de ouro das transnacionais), e da beleza com suas falsas promessas.

Mulheres em ofensiva contra a mercantilização

Ser contra a mercantilização do corpo e da vida das mulheres significa combater a lógica que transforma as mulheres em objetos a serem comprados, vendidos, ou mesmo tomados à força.

A desconstrução dos mecanismos do mercado, da exploração do trabalho, das pressões da mídia, passando pelas novas e velhas formas de controle do corpo, vai ao coração do sistema capitalista, e nos permite, a partir de experiências cotidianas das mulheres, fazer relações entre as situações de opressão e o funcionamento da ordem econômica.

A MMM tem como um eixo estruturador de sua ação a luta contra o livre comércio ou livre mercado. No Brasil, por exemplo, atuou na luta contra a OMC, denunciando que essa instituição não serve apenas para a regulação do comércio, mas tem como objetivo a mercantilização de todas as dimensões da vida. Na Campanha contra a Alca, em 2002, a MMM elaborou como consigna “O mundo não é uma mercadoria! As mulheres também não!”. Esta consigna se transformou em um grito da batucada feminista: “A nossa luta é todo dia: somos mulheres e não mercadoria”. E de lá para cá, a MMM no país tem lutado e resistido em vários espaços feministas e mistos no país, nos Fóruns Sociais Mondais, nos Fóruns Brasileiros, em oficinas, ações direitas, mobilizações, encontros nacionais e estaduais, e nas ofensivas (como a “Ofensiva contra a Mercantilização do Corpo e da Vida”).

A luta contra a sociedade de mercado e a resistência à mercantilização do corpo e da vida das mulheres segue como um eixo fundamental para uma ação feminista que incorpore a perspectiva de classe e seja protagonista de uma transformação profunda da ordem social global. Ou seja, para a construção de um feminismo não institucionalizado e militante.

*Texto adaptado do Caderno Marcha Mundial das Mulheres, Nº 1 – Junho 2008, MMM Brasil.

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